Responsabilidade civil do Médico (artigo)
Ruy Rosado de Aguiar Jr.
Sumário:
- Pressupostos da Responsabilidade Civil
- Responsabilidade Contratual e Extracontratual
- Obrigação de Resultado e Obrigação de Meios
- Deveres do Médico
- A culpa e Sua Prova
- Medicina Coletiva
- A Assistência e os Hospitais Públicos
- As Entidades Privadas de Seguro e de Assistência Médica
- Dano
- Causalidade
- Conclusão – Perspectivas Atuais
- Bibliografia.
Introdução
São muitas as razões que determinam a intensificação do interesse pelo estudo da responsabilidade civil do médico.
Durante muitos séculos, a sua função esteve revestida de caráter religioso e mágico, atribuindo-se aos desígnios de Deus a saúde e a morte. Je le soignais, Dieu le guérit… s’il le jugeait opportun. Nesse contexto, desarrazoado responsabilizar o médico, que apenas participava de um ritual, talvez útil, mas dependente exclusivamente da vontade divina. Mais recentemente, no final do século passado e primórdios deste, o médico era visto como um profissional cujo título lhe garantia a onisciência, médico da família, amigo e conselheiro, figura de uma relação social que não admitia dúvida sobre a qualidade de seus serviços, e, menos ainda, a litigância sobre eles. O ato médico se resumia na relação entre uma confiança (a do cliente) e uma consciência (a do médico).
As circunstâncias hoje estão mudadas. As relações sociais massificaram-se, distanciando o médico do seu paciente. A própria denominação dos sujeitos da relação foi alterada, passando para usuário e prestador de serviços, tudo visto sob a ótica de uma sociedade de consumo, cada vez mais consciente de seus direitos, reais ou fictícios, e mais exigente quanto aos resultados.
De outro lado, o fantástico desenvolvimento da ciência determinou o aumento dos recursos postos à disposição do profissional; com eles, cresceram as oportunidades de ação e, conseqüentemente, os riscos. A eficácia é o que caracteriza a Medicina moderna, a tal ponto que o médico e o biologista contemporâneos não se contentam somente em prevenir ou tratar as doenças, mas se propõem a superar a deficiência de uma função natural, substituir esta função ou modificar características naturais do sujeito. Essa eficácia, entretanto, é inseparável de três outros elementos, comumente desconhecidos do leigo: agressividade, perigosidade e complexidade. As expectativas do doente não só por isso se ampliaram: a seguridade social estendeu o uso dos serviços médicos. E o doente, que também é um segurado, confunde facilmente o direito à seguridade com o direito à cura; se esta não ocorre, logo suspeita de um erro médico. Acrescente-se a isso a disposição da mídia de transformar em escândalo o infortúnio, e facilmente encontraremos a explicação para o incremento do número de reclamações judiciais versando sobre o nosso tema, ações facilitadas porque não dependem da quebra de uma relação de respeito e afeto que existia com o médico de família, pois muitas vezes, hoje, o reclamante não teve relação com o médico, ou a teve muito superficial. Nos EUA, (Mudamos) em 1970, 1/4 dos médicos respondia a ações de responsabilidade.
Esta exposição, destinada ao IV Congresso Internacional de Danos, que se realizou em Buenos Aires em 1995, promovido pela “Asociación de Abogados de Buenos Aires”, contém notícia do estado da questão no Brasil, abordando os aspectos que me pareceram mais relevantes com referência a conceitos jurídicos básicos, aos deveres do médico, à culpa e sua prova, à relação do médico na medicina coletiva, aos serviços de saúde, públicos e privados, ao dano, aí referidos brevemente o aborto, a operação transexual e a pesquisa médica, concluindo com observação sobre as novas tendências da responsabilidade civil. Exclui o tema relativo à indenização, que tratarei em outra ocasião, juntamente com estudo sobre o dano à pessoa.
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1. Pressupostos da Responsabilidade Civil
A responsabilidade civil que decorre da ação humana tem como pressupostos a existência de uma conduta voluntária, o dano injusto sofrido pela vítima, que pode ser patrimonial ou extrapatrimonial; a relação de causalidade entre o dano e a ação do agente; o fator de atribuição da responsabilidade pelo dano ao agente, de natureza subjetiva (culpa ou dolo), ou objetiva (risco, eqüidade, etc.). O Professor Jorge Mosset Iturraspe acentua que, modernamente, “el quid se encuentra en el dãno, pero más em el injustamente sufrido que en el causado com ilicitud”. A responsabilidade civil específica do profissional médico (isto é, daquele que tem habilitação universitária e exerce a Medicina com habitualidade, vivendo do seu trabalho), aspecto que ora nos interessa, tem como pressuposto o ato médico, praticado com violação a um dever médico, imposto pela lei, pelo costume ou pelo contrato, imputável a título de culpa, causador de um dano injusto, patrimonial ou extrapatrimonial.
Além dessa responsabilidade por ato próprio, o médico pode responder por ato de outro, ou por fato das coisas que usa a seu serviço.
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2. Responsabilidade Contratual e Extracontratual
É comum fazer-se, na doutrina, a distinção entre responsabilidade por violação de obrigação derivada de um negócio jurídico, cujo descumprimento caracterizaria o fato ilícito civil gerador do dano, e a responsabilidade delitual ou extracontratual, que abstrai a existência de um contrato previamente celebrado e decorre de um ato ilícito absoluto, violador das regras de convivência social e causador de um dano injusto. A primeira encontra seu fundamento no artigo 1.056 do Código Civil: “Não cumprindo a obrigação ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde o devedor por perdas e danos”; a segunda, no artigo 159 do mesmo Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.” Apesar das regras legais que lhes atribuem diferentes conseqüências, a distinção está sendo abandonada pela moderna doutrina, que nela não vê maior utilidade, fazendo residir o fundamento único da responsabilidade civil no contato social. Caminha-se, pois, para a unificação do sistema. Porém, enquanto não houver a adaptação legal a esses novos princípios, devemos admitir, para o plano expositivo, que a responsabilidade médica não obedece a um sistema unitário. Ela pode ser contratual, derivada de um contrato estabelecido livremente entre paciente e profissional, a maioria das vezes de forma tácita, e compreende as relações restritas ao âmbito da Medicina privada, isto é, ao profissional que é livremente escolhido, contratado e pago pelo cliente; será extracontratual quando, não existindo o contrato, as circunstâncias da vida colocam frente a frente médico e doente, incumbindo àquele o dever de prestar assistência, como acontece no encontro de um ferido em plena via pública, ou na emergência de intervenção em favor de incapaz por idade ou doença mental. Será igualmente extracontratual a relação da qual participa o médico servidor público, que atende em instituição obrigada a receber os segurados dos institutos de saúde pública, e também o médico contratado pela empresa para prestar assistência a seus empregados. Nesses últimos casos, o atendimento é obrigatório, pressupondo uma relação primária de Direito Administrativo ou de Direito Civil entre o médico e a empresa ou o hospital público, e uma outra entre o empregado e a empresa, ou entre o segurado e a instituição de seguridade, mas não há contrato entre o médico e o paciente.
A diferença fundamental entre essas duas modalidades de responsabilidade está na carga da prova atribuída às partes; na responsabilidade contratual, ao autor da ação, lesado pelo descumprimento, basta provar a existência do contrato, o fato do inadimplemento e o dano, com o nexo de causalidade, incumbindo ao réu demonstrar que o dano decorreu de uma causa estranha a ele; na responsabilidade extracontratual ou delitual, o autor da ação deve provar, ainda, a imprudência, negligência ou imperícia do causador do dano (culpa), isentando-se o réu de responder pela indenização se o autor não se desincumbir desse ônus. Na prática, isso só tem significado com a outra distinção que se faz entre obrigação de resultado e obrigação de meios.
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3. Obrigação de Resultado e Obrigação de Meios
A obrigação é de meios quando o profissional assume prestar um serviço ao qual dedicará atenção, cuidado e diligência exigidos pelas circunstâncias, de acordo com o seu título, com os recursos de que dispõe e com o desenvolvimento atual da ciência, sem se comprometer com a obtenção de um certo resultado. O médico, normalmente, assume uma obrigação de meios.
A obrigação será de resultado quando o devedor se comprometer a realizar um certo fim, como, por exemplo, transportar uma carga de um lugar a outro, ou consertar e pôr em funcionamento uma certa máquina (será de garantia se, além disso, ainda afirmar que o maquinário atingirá uma determinada produtividade). O médico a assume, por exemplo, quando se compromete a efetuar uma transfusão de sangue ou a realizar certa visita.
Sendo a obrigação de resultado, basta ao lesado demonstrar, além da existência do contrato, a não-obtenção do resultado prometido, pois isso basta para caraterizar o descumprimento do contrato, independentemente das suas razões, cabendo ao devedor provar o caso fortuito ou a força maior, quando se exonerará da responsabilidade. Na obrigação de meios, o credor (lesado, paciente) deverá provar a conduta ilícita do obrigado, isto é, que o devedor (agente, médico) não agiu com atenção, diligência e cuidados adequados na execução do contrato.
Logo, tanto na responsabilidade delitual como na responsabilidade contratual derivada de uma obrigação de meios, o paciente deve provar a culpa do médico, seja porque agiu com imprudência, negligência ou imperícia e causou um ilícito absoluto (art. 159), seja porque descumpriu sua obrigação de atenção e diligência, contratualmente estabelecida.
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4. Deveres do Médico
O médico tem o dever de agir com diligência e cuidado no exercício da sua profissão, conduta exigível de acordo com o estado da ciência e as regras consagradas pela prática médica.
Aguiar Dias, o nosso maior tratadista sobre responsabilidade civil, decompõe as obrigações implícitas no contrato médico em deveres de: 1) conselhos; 2) cuidados; 3) abstenção de abuso ou desvio de poder.
O primeiro deles corresponde ao dever de informação. O médico deve esclarecer o seu paciente sobre a sua doença, prescrições a seguir, riscos possíveis, cuidados com o seu tratamento, aconselhando a ele e a seus familiares “sobre as precauções essenciais requeridas pelo seu estado”. Ao reverso do que ocorria anteriormente, a tendência, hoje, seguindo a escola americana, é a de manter o paciente informado da realidade do seu estado. Quando os prognósticos são graves, é preciso conciliar esse dever de informar com a necessidade de manter a esperança do paciente, para não levá-lo à angústia ou ao desespero. Se a perspectiva é de desenlace fatal, a comunicação deve ser feita ao responsável (art. 59 do Código de Ética, Resolução n. 1.246, de 1988, do Conselho Federal de Medicina). O prognóstico grave pode ser compreensivelmente dissimulado; o fatal, revelado com circunspecção ao responsável. Em se tratando de risco terapêutico, o médico deve advertir dos riscos previsíveis e comuns; os excepcionais podem ficar na sombra. Na cirurgia, porém, muito especialmente na estética, a informação deve ser exaustiva, bem assim quanto ao uso de novos medicamentos. Tais esclarecimentos devem ser feitos em termos compreensíveis ao leigo, mas suficientemente esclarecedores para atingir seu fim, pois se destinam a deixar o paciente em condições de se conduzir diante da doença e de decidir sobre o tratamento recomendado ou sobre a cirurgia proposta.
Isso toca outro ponto de crucial importância na atividade profissional: a necessidade de obter o consentimento do paciente para a indicação terapêutica e cirúrgica. Toda vez que houver um risco a correr, é preciso contar com o consentimento esclarecido, só dispensável em casos de urgência que não possa ser de outro modo superada, ou de atuação compulsória. É que cabe ao paciente decidir sobre a sua saúde, avaliar sobre o risco a que estará submetido com o tratamento ou a cirurgia e aceitar ou não a solução preconizada pelo galeno.
A falta de informação, porém, por si só não é causa do dano, como adverte Penneau, pelo que é preciso distinguir: se a intervenção era indispensável e causou dano, a falta de informação adequada não pode ser levada em conta, a não ser para uma indenização por dano moral; se dispensável, sim, porque o paciente poderia ter decidido não correr o risco.
A conclusão sobre o âmbito da informação e da existência do consentimento deve ser extraída, pelo juiz, do conjunto dos fatos provados, e mais precavido será o médico que obtiver declaração escrita do paciente ou de seu representante.
Em certas circunstâncias, a inexistência do assentimento é evidente, como no caso do surgimento de um fato novo, no desenrolar de uma cirurgia. Se possível suspender o ato, sem risco, para submeter a decisão ao paciente em vista de novos exames do material encontrado, essa a providência recomendada. Chammard e Monzein referem o caso do paciente com pequeno nódulo na face interna do braço, com diagnóstico benéfico e previsão de cirurgia simples; na operação, verificou-se a existência de um tumor maligno, que foi atacado, com secção do nervo radial, afetando o movimento do braço. A Corte entendeu culpado o cirurgião e procedente a demanda. Nos Embargos Infringentes n. 208/90, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu a liceidade da conduta do cirurgião que ampliou a cirurgia e extirpou o lobo direito da tireóide, sem o consentimento do doente. Mas o voto vencido, com irrecusável acerto, acentuou que o posterior exame laboratorial comprovou que o tecido extraído era sadio e que não havia perigo de vida na interrupção da cirurgia, para aguardar o resultado da biópsia.
O ato médico deve ser praticado de tal sorte que, além do cuidado que toda pessoa deve guardar na sua vida de relação (não confundir, na hora da extração, o membro são com o doente; não tombar o paciente; não esquecer instrumentos na incisão do operado, etc.), ainda atenda aos deveres de cuidado próprios da profissão, no diagnóstico, na indicação terapêutica, na intervenção cirúrgica e no prognóstico. “O erro de técnica”, acentua Aguiar Dias, “é apreciado com prudente reserva pelos tribunais. Com efeito, o julgador não deve nem pode entrar em apreciações de ordem técnica quanto aos métodos científicos que, por sua natureza, sejam passíveis de dúvidas e discussões”.
O diagnóstico consiste na determinação da doença do paciente, seus caracteres e suas causas. O erro no diagnóstico não gera responsabilidade, salvo se este for realizado sem atenção e precauções conforme o estado da ciência, apresentando-se como erro manifesto e grosseiro. Comete-o o médico que deixa de recorrer a outro meio de investigação ao seu alcance ou profere um juízo contra princípios elementares de patologia.
Na indicação terapêutica, o médico é livre para a escolha do tratamento, decisão a que chega fazendo um balanço entre os riscos e a eficácia das medidas preconizadas.
Aguiar Dias, depois de definir o tratamento como “a soma dos meios empregados para conservar a vida, melhorar a saúde ou aliviar a dor”, enumera casos reveladores de erro ou culpa do médico: exposição a riscos inúteis; manutenção de aparelho que provoca reações anormais; omissão de normas de higiene e assepsia; receita com letra ilegível, permitindo o engano; receita de remédio tóxico sem investigar incompatibilidade e intolerância, etc.
Antonio Chaves alerta para os riscos da iatrogenia (doença que surge em virtude de intervenção médica ou medicamentosa), com 5% das camas de hospitais do mundo ocupadas por pessoas cuja doença é conseqüência do tratamento, significando, nos EUA, um gasto de três bilhões de dólares.
A obediência às regras de higiene é comum a todos quantos lidam com a saúde, podendo levar à responsabilidade do médico quando de seu descumprimento resultar o dano. O prognóstico dificilmente acarretará prejuízo, mas poderá acontecer em caso de perícia médica; também poderá trazer dano moral a quem sofra os efeitos de errôneo juízo sobre o desdobramento futuro da doença.
Além dos deveres de informação, obtenção de consentimento e de cuidado, tem o médico os deveres de: a) sigilo, previsto no artigo 102 do Código de Ética; b) não abusar do poder, submetendo o paciente a experiências, vexames ou tratamento incompatíveis com a situação; c) não abandonar paciente sob seus cuidados, salvo caso de renúncia ao atendimento, por motivos justificáveis, assegurada a continuidade do tratamento (art. 61, Código de Ética); d) no impedimento eventual, garantir sua substituição por profissional habilitado; e) não recusar o atendimento de paciente que procure seus cuidados em caso de urgência, quando não haja outro em condições de fazê-lo.
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5. A Culpa e Sua Prova
O médico que viola um desses deveres pratica uma ação que surge como o primeiro pressuposto da sua responsabilidade civil. A este deve somar-se a culpa, nas modalidades de imprudência (agir com descuido), a negligência (deixar de adotar as providências recomendadas) e a imperícia (descumprimento de regra técnica da profissão). Anibal Bruno distingue a imperícia, elemento da conduta culposa, de erro profissional “que provém das imperfeições da própria arte ou ciência. Na medicina, por exemplo, em certas circunstâncias, é sempre possível um erro de diagnóstico que pode acarretar conseqüências mais ou menos graves. Há erro escusável, e não imperícia, sempre que o profissional, empregando correta e oportunamente os conhecimentos e as regras da sua ciência, chega a uma conclusão falsa, possa, embora, advir daí um resultado de dano ou de perigo”. É a mesma distinção que faz a Corte de Cassação da França: a culpa supõe uma falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, conseqüência inelutável da falibilidade humana.
A apuração da culpa do profissional médico obedece aos mesmos procedimentos adotados para a definição da culpa comum: diante das circunstâncias do caso, o juiz deve estabelecer quais os cuidados possíveis que ao profissional cabia dispensar ao doente, de acordo com os padrões determinados pelos usos da ciência, e confrontar essa norma concreta, fixada para o caso, com o comportamento efetivamente adotado pelo médico. Se ele não a observou, agiu com culpa. Essa culpa tem de ser certa, ainda que não necessariamente grave: “Não é necessário que a culpa do médico seja grave: basta que seja certa”. O Professor Caio Mário sustenta que a culpa médica é apreciada como qualquer outra. Desde que o juiz entenda que um médico prudente, nas mesmas circunstâncias, teria tido comportamento diverso do acusado, deve condenar este à reparação. Igualmente, na França, a doutrina é unânime em rejeitar a tese de que a culpa somente ensejaria a responsabilidade se fosse grave. O que é possível, isto sim (embora não seja da nossa prática forense), é estabelecer a proporcionalidade da indenização em função da gradação da culpa.
Na determinação da culpa, é preciso levar em consideração circunstâncias especiais. Assim, do anestesista se espera uma vigilância absoluta durante o decurso da cirurgia, até a retomada da consciência do paciente; do especialista, exige-se mais que do médico generalista; do cirurgião estético, rigoroso cumprimento do dever de informação e cuidado na execução do trabalho, que muitos consideram uma obrigação de resultado.
Constituindo-se em obrigação de meio, o descumprimento do dever contratual deve ser provado mediante a demonstração de que o médico agiu com imprudência, negligência ou imperícia, assim como está previsto no artigo 1.545 do Código Civil (“Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento”). A Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), no seu artigo 14, § 4.o, manteve a regra de que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa”. Esse mesmo ônus que existe na relação contratual, tratando-se de obrigação de meio, também existe na responsabilidade extracontratual, cabendo igualmente ao lesado a prova dos pressupostos enumerados no artigo 159 do Código Civil, que também se refere à culpa nas suas modalidades de imprudência, negligência e imperícia.
Não se admite a culpa virtual, princípio segundo o qual, “diante de certas circunstâncias, estabelece-se, não que o demandado tenha cometido tal culpa, mas que não possa senão tê-la cometido”.
São consideráveis as dificuldades para a produção da prova da culpa. Em primeiro lugar, porque os fatos se desenrolam normalmente em ambientes reservados, seja no consultório ou na sala cirúrgica; o paciente, além das dificuldades em que se encontra pelas condições próprias da doença, é um leigo, que pouco ou nada entende dos procedimentos a que é submetido, sem conhecimentos para avaliar causa e efeito, nem sequer compreendendo o significado dos termos técnicos; a perícia é imprescindível, na maioria das vezes, e sempre efetuada por quem é colega do imputado causador do dano, o que dificulta e, na maioria das vezes, impede a isenção e a imparcialidade. É preciso superá-las, porém, com determinação, especialmente quando atuar o corporativismo.
O juiz deve socorrer-se de todos os meios válidos de prova: testemunhas, registros sobre o paciente existentes no consultório ou no hospital, laudos fornecidos e, principalmente, perícias. Uma das formas de fazer a prova dos fatos é a exibição do prontuário, que todo médico deve elaborar (art. 69, Código de Ética), e a cujo acesso o paciente tem direito (art. 70). Em juízo, cabe o pedido de exibição; a recusa permitirá ao juiz admitir como verdadeiros os fatos que se pretendia provar, se não houver a exibição ou se a recusa for considerada ilegítima (art. 355 e 359, CPC).
Esse dever lateral de documentação, mesmo depois de esgotada a relação médico-paciente, Figueiredo Dias e Jorge Monteiro consideram derivado do princípio da boa-fé:
“A boa-fé exige que o médico ou a instituição médica que contratou com o doente, mesmo post contractum finitum, ponha à sua disposição a documentação necessária para permitir averiguar se lhe foram prestados os ‘melhores cuidados’.”
Na Argentina, predomina hoje o entendimento de que, “em determinadas circunstâncias, se produz uma transferência da carga probatória ao profissional, em razão de encontrar-se em melhores condições de cumprir tal dever”. É o princípio da carga probatória dinâmica, baseado no fato de que, tendo as partes o dever de agir com boa-fé e de levar ao juiz o maior número de informações de fato para a melhor solução da causa, cada uma delas está obrigada a concorrer com os elementos de prova a seu alcance. Nas relações médico-paciente, é normalmente o médico quem dispõe de maior número e de melhores dados sobre o fato, daí o seu dever processual de levá-los ao processo, fazendo a prova da correção do seu comportamento. Tocando ao médico o ônus de provar que agiu sem culpa, não se lhe atribui a produção de prova negativa, apenas se exige dele a demonstração “de como fez o diagnóstico, de haver empregado conhecimentos e técnicas aceitáveis, haver ministrado ou indicado a medicação adequada, haver efetuado a operação que correspondia em forma adequada, haver controlado devidamente o paciente, etc.”.
No Brasil, prevalece a orientação de que incumbe ao autor o ônus de provar a culpa do profissional médico nas relações contratuais e delituais de natureza privada. Às vezes, até, com rigor exagerado (ApCiv. 589.04565-7, TJRS; ApCiv. 589.06471-6, TJRS; ApCiv. 5.90038154, TJRS).
Mas o ônus probatório do credor dos serviços médicos, isto é, do paciente, de demonstrar o descumprimento do contrato pelo devedor e prestador dos serviços médicos, limita-se ao dever de “provar objetivamente que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis, nisto consistindo o incumprimento do contrato. Dir-se-á que isto é o mais difícil de conseguir. E é. Mas em todo o caso, é diferente ter de provar a verificação de um erro de técnica profissional, com recurso às leis da arte e da ciência médica, ou ter de provar que aquele médico, naquelas circunstâncias, podia e devia ter agido de maneira diferente. A prova de que estas circunstâncias não se verificaram, estará o médico em melhores condições de a fazer. Parece pois justo impor-lhe esse ônus”.
Quando a obrigação é de resultado, cabe ao autor da ação demonstrar o descumprimento do contrato por parte do prestador dos serviços médicos, mediante a prova de que o objetivo proposto não foi alcançado.
Consideram-se obrigações de resultado as de vacinação, de transfusão de sangue, de exames biológicos de execução corrente e simples, a de executar pessoalmente e em hora determinada certo ato médico (visitas etc.), a de segurança dos instrumentos que usa na prática do ato médico, etc.
Polêmica é a definição da natureza jurídica da cirurgia estética ou corretiva, quando o paciente é saudável e pretende apenas melhorar a sua aparência; diferente da cirurgia reparadora, que corrige lesões congênitas ou adquiridas.
A orientação hoje vigente na França, na doutrina e na jurisprudência, inclina-se por admitir que a obrigação a que está submetido o cirurgião plástico não é diferente daquela dos demais cirurgiões, pois corre os mesmos riscos e depende da mesma álea. Seria, portanto, como a dos médicos em geral, uma obrigação de meios. A particularidade residiria no recrudescimento dos deveres de informação, a qual deve ser exaustiva, e de consentimento, claramente manifestado, esclarecido, determinado. Duas decisões da Corte de Lyon e da Corte de Cassação, de 1981, comentadas por Georges Durry, reafirmam que se trata de uma obrigação de meios, porque em toda operação existe uma álea ligada à reação do organismo, e acentuam a existência de um dever particular de informação. Mais recentemente, em 21.02.1991, a Corte de Versalhes, reconhecendo a existência de uma obrigação de meios, condenou o cirurgião plástico que não comparou convenientemente os riscos e os benefícios de uma operação considerada prematura, deixando de fornecer a exata informação de todos os riscos.
O eminente Professor Luis Andorno, após ter sido defensor da idéia oposta, no último curso ministrado em Porto Alegre, assim se expressou:
“Se bem tenhamos participado durante algum tempo deste critério de situar a cirurgia plástica no campo das obrigações de resultado, um exame meditado e profundo da questão nos levou à conclusão de que resulta mais adequado não fazer distinções a respeito, colocando também o campo da cirurgia estética no âmbito das obrigações de meios, isto é, no campo das obrigações gerais de prudência e diligência. É assim porquanto, como bem assinala o brilhante jurista e catedrático francês e estimado amigo, Prof. François Chabas, de acordo com as conclusões da ciência médica dos últimos tempos, o comportamento da pele humana, de fundamental importância na cirurgia plástica, é imprevisível em numerosos casos. Ademais, agrega dito jurista, toda a intervenção sobre o corpo humano é sempre aleatória”.
No Brasil, porém, a maioria da doutrina e da jurisprudência defende a tese de que se trata de uma obrigação de resultado. Assim os ensinamentos de Aguiar Dias e Caio Mário, para citar apenas dois dos nossos mais ilustres juristas.
O acerto está, no entanto, com os que atribuem ao cirurgião estético uma obrigação de meios. Embora se diga que os cirurgiões plásticos prometam corrigir, – sem o que ninguém se submeteria, sendo são, a uma intervenção cirúrgica, – assumindo a obrigação de alcançar o resultado prometido, a verdade é que a álea está presente em toda intervenção cirúrgica, e imprevisíveis são as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico. Pode acontecer que algum cirurgião plástico ou muitos deles assegurem a obtenção de um certo resultado, mas isso não define a natureza da obrigação, não altera a sua categoria jurídica, que continua sendo sempre a obrigação de prestar um serviço que traz consigo o risco. É bem verdade que se pode examinar com maior rigor o elemento culpa, pois mais facilmente se constata a imprudência na conduta do cirurgião que se aventura à prática da cirurgia estética que tinha chances reais, tanto que ocorrente, de fracasso. A falta de uma informação precisa sobre o risco e a não-obtenção de consentimento plenamente esclarecido conduzirão eventualmente à responsabilidade do cirurgião, mas por descumprimento culposo da obrigação de meios.
Na cirurgia estética, o dano pode consistir em não alcançar o resultado embelezador pretendido, com frustração da expectativa, ou em agravar os defeitos, piorando as condições do paciente. As duas situações devem ser resolvidas à luz dos princípios que regem a obrigação de meios, mas no segundo fica mais visível a imprudência ou a imperícia do médico que provoca a deformidade. O insucesso da operação, nesse último caso, caracteriza indício sério da culpa do profissional, a quem incumbe a contraprova de atuação correta.
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6. Medicina Coletiva
No desempenho de sua função, o médico contata muitas pessoas e entidades, com as quais mantém relações jurídicas de diversas espécies. Assim, entre o médico e o hospital, o médico e o seu pessoal auxiliar, o cirurgião e o anestesista, as relações entre os integrantes da equipe ou do grupo, do generalista com o especialista, a situação especial dos hospitais públicos, dos médicos credenciados pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), os convênios de saúde, etc., todas são situações relevantes, algumas vezes complexas, que exigem ao menos uma breve referência.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre (1) o ato médico propriamente dito, que somente pode ser realizado por médico (diagnóstico, indicação terapêutica, cirurgia, prognóstico), e pelo qual ele responde, (2) e os atos realizados por pessoal auxiliar mediante a sua direta supervisão, ou por pessoal qualificado que segue suas instruções, pelos quais também responde, (3) dos atos derivados do contrato de hospedagem, ligados à administração hospitalar, como o dever de guarda do doente, e (4) dos atos de tratamento, realizados em hospital ou em farmácia, de que são exemplos a administração de remédio errado, injeção mal feita, compressas excessivamente quentes etc., pelos quais o médico não responde.
O hospital é uma universalidade de fato, formado por um conjunto de instalações, aparelhos e instrumentos médicos e cirúrgicos destinados ao tratamento da saúde, vinculado a uma pessoa jurídica, sua mantenedora, mas que não realiza ato médico. Sobre ele não incide o disposto no artigo 1.545 do Código Civil, sendo-lhe aplicáveis os princípios comuns da responsabilidade civil. Quando se fala aqui em hospital, a referência é à pessoa jurídica que o mantém. O hospital firma com o paciente internado um contrato hospitalar, assumindo a obrigação de meios, consistente em fornecer hospedagem (alojamento, alimentação) e em prestar serviços paramédicos (medicamentos, instalações, instrumentos, pessoal de enfermaria, etc.); se dispuser de um corpo de médicos, seus empregados, também poderá assumir a obrigação de prestar serviços médicos propriamente ditos. Pelos atos culposos de médicos que sejam seus empregados, ou de seu pessoal auxiliar, responde o hospital como comitente, na forma do artigo 1.521, III, do Código Civil: “São também responsáveis pela reparação civil: (…) III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele”.
A regra da responsabilidade do comitente sofre restrições “quanto a certas profissões, como a dos médicos e dos advogados, pois não se admite uma subordinação para com os clientes nos termos indicados”. Mas isso no que concerne às relações entre o cliente e o médico, conforme esclarece em nota o emitente professor português, citando Ruy de Alarcao, porque se admite a relação de comissão de médico a médico, e, digo eu, de hospital para médico.
O hospital responde pelos atos médicos dos profissionais que o administram (diretores, supervisores etc.) e dos médicos que sejam seus empregados. Não responde quando o médico simplesmente utiliza as instalações do hospital para internação e tratamento dos seus pacientes. Em relação aos médicos que integram o quadro clínico da instituição, não sendo assalariados, é preciso distinguir: se o paciente procurou o hospital e ali foi atendido por integrante do corpo clínico, ainda que não empregado, responde o hospital pelo ato culposo do médico, em solidariedade com este; se o doente procura o médico e este o encaminha à baixa no hospital, o contrato é com o médico, e o hospital não responde pela culpa deste, embora do seu quadro, mas apenas pela má prestação dos serviços hospitalares que lhe são afetos. A responsabilidade pela ação do integrante do corpo clínico, na situação primeiramente referida, explica-se porque a responsabilidade por ato de outro, prevista no artigo 1.521, III, do Código Civil (é responsável o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos), abrange também aquelas situações em que não existe uma relação de emprego, bastando que a pessoa jurídica utilize serviços de outra através de uma relação que gere o estado de subordinação. É o caso do hospital, que, para seu funcionamento, necessita do serviço do médico, o qual, por sua vez, fica subordinado, como membro do corpo clínico, aos regulamentos da instituição.
O hospital responde pelo dano produzido pelas coisas (instrumentos, aparelhos) utilizadas na prestação dos seus serviços:
“Ao dono da coisa incumbe, ocorrido o dano, suportar os encargos dele decorrentes, restituindo o ofendido ao statu quo ideal, por meio da reparação. Essa presunção não é irrefragável. Mas ao dono da coisa cabe provar que, no seu caso, ela não tem cabimento”.
Também responde pelos atos do seu pessoal, com presunção de culpa: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto” (Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal). Isso, contudo, não dispensa que se prove a culpa do servidor na prática do ato danoso. Isto é, o hospital não responde objetivamente, mesmo depois da vigência do Código de Defesa do Consumidor, quando se trata de indenizar dano produzido por médico integrante de seus quadros (AgIn. 179.184-1 – 5.a CCTJSP), pois é preciso provar a culpa deste, para somente depois se ter como presumida a culpa do hospital.
O não-atendimento do doente pelo hospital pode expressar-se através de simples recusa ou pelo encaminhamento a outro hospital (hospital de referência). No primeiro caso, a falta de assistência por defeito da organização, não mantendo o plantão ou os serviços necessários para atender a uma emergência previsível, é fator determinante da responsabilidade do hospital. No segundo caso, a remessa justificada do doente a um hospital de referência não constitui motivo para a atribuição da responsabilidade:
“Em tese, o médico que ordenar o reencaminhamento de paciente por falta de leito ou condições de atendimento age com diligência e não deve ser considerado culpado. Da mesma forma, o hospital não pode ser obrigado a se preparar para todos os casos de emergência, sendo certo que todos são aparelhados com unidades de pronto-socorro, o que elide a culpa e, mais, inviabiliza a técnica da presunção da culpa, que seria uma eterna responsabilização. Ademais, não é a atividade hospitalar responsável por todos os infortúnios da vida”.
A jurisprudência registra os casos de responsabilidade do hospital por falta de plantão (8.a CCTJRJ, 1981, RT 556/190), por efetuar diagnóstico inadequado (6.a CCTJSP, 1981, RT 549/72) e por demorar no atendimento cirúrgico que se fazia necessário (TJSC, Ap. 19.672, 1986).
Quando se aborda este tema, não é possível esquecer a situação dramática em que se encontra a rede hospitalar do país, bem descrita na reportagem de Elio Gaspari, na revista Veja de 18.08.1993, “A insuportável leveza da morte”, cujas deficiências constantemente constrangem os médicos a decidir sobre quem tem direito ao único aparelho, à escassa medicação, ao uso da sala cirúrgica. A Constituição de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo atendimento a todos. Com isso igualou, perante o serviço público da saúde, o desempregado e o que passa suas férias na Europa, fato que foi recentemente objeto da crítica do Ministro da Saúde (Folha de S. Paulo, edição de 03.03.1995), pois cria uma situação insustentável, não dispondo o Estado de recursos para atender a essa demanda. Em parte, porque não destina à saúde pública recursos suficientes (4% do PIB, enquanto nos EUA é de 12%); em parte, porque não há médicos em número suficiente (150 mil médicos para uma população de 150 milhões; em Portugal, 23 mil médicos, para uma população de 10 milhões); finalmente, porque o Estado tem de atender de graça quem pode pagar, e fica sem recursos para tratar do necessitado.
O médico pode se reunir a colegas para o exercício da profissão.
A situação mais comum se dá com a formação de uma equipe cirúrgica, pela qual responde o chefe da equipe, tanto pelos atos dos outros médicos, seus assistentes, como pelos serviços auxiliares de enfermagem (salvo quando estes constituem atos de enfermagem banais e comuns, pelos quais responde o hospital).
O anestesista ocupa hoje uma posição especial, em razão da autonomia que alcançou a especialidade: em relação a este, tem sido aplicada a noção de ato destacável, própria do Direito Administrativo (ac. da 2.a CCTJ. RS, Rel. Antonio Augusto Uflacker, Revista Jurídica 75/237), a fim de determinar a sua responsabilidade, e não necessariamente a do cirurgião. Uma vez demonstrada a causalidade exclusiva do ato anestésico, sem a concorrência do cirurgião, isto é, sem que este pratique atos ou expeça ordens contrárias ao recomendado pelo anestesista, não há razão para a imputação do cirurgião; porém, se foi ele quem escolheu o anestesista, poderá responder pela culpa in eligendo. Integrando o anestesista o quadro médico do hospital, sem possibilidade de escolha pelo paciente, mesmo assim, normalmente surge uma relação contratual entre o anestesista e o paciente, que é por ele previamente examinado e dele recebe cuidados prévios, razão pela qual respondem tanto o hospital quanto o anestesista, solidariamente.
Os erros do anestesista podem ser de diagnóstico (avaliar mal o risco anestésico, a resistência do paciente), terapêutico (medicação pré-anestésica ineficaz, omissões durante a aplicação) e de técnica (uso de substância inadequada, oxigenação insuficiente etc.). Sustenta-se que ele assume uma obrigação de resultado, desde que tenha tido oportunidade de avaliar o paciente antes da intervenção e concluído pela existência de condições para a anestesia, assumindo a obrigação de anestesiá-lo e de recuperá-lo. Parece, todavia, que a álea a que estão submetidos o anestesista e seu paciente não é diferente das demais situações enfrentadas pela medicina, razão pela qual não deixa de ser uma obrigação de meios, ainda que se imponha ao profissional alguns cuidados especiais na preparação do paciente, na escolha do anestésico, etc. Dele se exige acompanhamento permanente, não podendo se afastar da cabeceira do paciente durante o ato cirúrgico, até a sua recuperação.
A formação de um grupo de médicos pode se dar quando os associados têm todos igual habilitação para a prestação de iguais serviços ao doente, revezando-se indistintamente no atendimento, ou quando são reservadas áreas de especialização para cada um. Em ambas as situações, diversos profissionais prestam serviços ao mesmo paciente. A doutrina se inclina por admitir, em respeito ao princípio da independência do médico (“um direito do doente”), que a responsabilidade é individualizada, cada um respondendo pelos seus atos.
Estabelecendo-se, porém, entre eles, uma relação de subordinação (de fato ou regulamentar), é possível aplicar a regra da responsabilidade transubjetiva do artigo 1.521, III, do Código Civil, sendo necessário para isso, inicialmente, definir o âmbito da decisão de cada um: se o subordinado apenas cumpriu ordens, responde só o superior; se teve condições para concorrer na decisão, ambos respondem solidariamente. Pelos atos do estagiário, que desenvolve atividade de aprendizado sob a direta supervisão do orientador, não responde senão este.
Nas relações entre o generalista e o especialista: a) responde o generalista que deixa de chamar um especialista, quando as condições o recomendavam e havia essa possibilidade; b) o generalista que cumpre as recomendações do especialista, contratado pelo paciente, não responde pelas conseqüências daí advindas, atribuíveis ao especialista; c) se optar, porém, por outra indicação terapêutica, responde o generalista pelos danos.
O médico que estiver eventualmente impossilibitado de prestar pessoalmente os serviços ao seu cliente poderá providenciar a sua substituição. Nesse caso, adverte a Professora Vera Fradera, quando o substituído dirige a ação do substituto, responde o primeiro, como preponente; se não, a responsabilidade é apenas do substituto, de natureza extracontratual, pois entre este e o paciente não se estabeleceu nenhum vínculo. Diferente é a situação do médico que, podendo recusar seus serviços (artigos 35 e 58 do Código de Ética), simplesmente indica outro profissional, por cujos atos não se responsabiliza.
O médico que solicita exame que não seja comum e de rotina deve avisar o paciente dos riscos a que estará sujeito, respondendo pela sua omissão. Essa responsabilidade não elimina a do médico incumbido de realizar o exame, pois este, mais do que ninguém, sabe ou deve saber da perigosidade dos aparelhos, substâncias e técnicas que utiliza, incumbindo-lhe não apenas zelar pela segurança do paciente, como o dever de especialmente informá-lo dos riscos. Inaceitável, pois, a afirmativa de que “o médico executor de aortografia não responde por culpa se deixa de avisar o paciente dos riscos do exame – obrigação que incumbe ao médico clínico, solicitante do exame” (4.a CCTJRS, RJTJRS – 68/340).
Pela utilização de instrumentos perigosos que causem danos aos seus pacientes, responde o médico, tenha sido ele mesmo quem manipulou o instrumento ou o aparelho, tenha sido um não-médico, seu empregado.
“Há uma tendência, legítima, de fazer pesar sobre o profissional uma obrigação de resultado a partir do momento em que a prestação é de ordem material. E a novidade reside precisamente no fato de que a responsabilidade de pleno direito, aqui, se aplica à prestação mesma do médico”.
A responsabilidade do médico, relativamente às coisas e instrumentos que utiliza, decorre do princípio geral da responsabilidade do dono ou detentor, já anteriormente citado, quando se tratou do hospital. Se o defeito é de fabricação, responde o fabricante, independentemente da prova de culpa (art. 12 do Código de Defesa do Consumidor).
Até aqui tratamos da Medicina privada, prestada por hospitais e clínicas particulares, exercida por médicos profissionais liberais.
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7. A Assistência e os Hospitais Públicos
Os hospitais públicos, da União, Estados, Municípios, suas empresas públicas, autarquias e fundações, estão submetidos a um tratamento jurídico diverso, deslocadas suas relações para o âmbito do Direito Público, especificamente do Direito Administrativo, no capítulo que versa sobre a responsabilidade das pessoas de direito público pelos danos que seus servidores, nessa qualidade, causem a terceiros. Dispõe o artigo 37, § 6.o, da Constituição da República:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Adotou-se o princípio da responsabilidade objetiva, cabendo ao Estado o dever de indenizar sempre que demonstrada a existência do fato, praticado pelo agente do serviço público que, nessa qualidade, causar o dano (é a responsabilidade pelo fato do serviço), eximindo-se a Administração, total ou parcialmente, se provar a força maior, o fato necessário ou inevitável da natureza, ou a culpa exclusiva ou concorrente da vítima.
“O dissídio que lavrou na doutrina sobre a prevalência da teoria do risco integral ou do risco administrativo não tem maior relevância, pois os defensores de ambas as correntes aceitam a possibilidade de exclusão ou atenuação da responsabilidade do Estado sempre que provada a atuação de fatores causais estranhos ao Estado, como a culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Apenas corrente minoritária apregoa que o Estado responde sempre, ainda quando a vítima seja culpada pelo evento. O STF tem reiteradamente acolhido a teoria do risco administrativo.”
Essa responsabilização do Estado pelo fato do serviço, porém, não pode ser submetida a um regime único. Assim, quando se trata de omissão do Estado em evitar um resultado que deveria impedir, em razão da sua posição de garantidor do bem (p. ex.: danos decorrentes de inundação), a sua responsabilidade somente se estabelece uma vez demonstrada a culpa do serviço; igualmente, a responsabilização do Estado pelos atos do juiz pressupõe o funcionamento anormal da Justiça. Põe-se, então, a questão sobre a atuação dos serviços públicos de saúde, prestadores de serviços médico-hospitalares.
Canotilho classifica a responsabilidade por fato da função administrativa em (a) responsabilidade por atos administrativos lícitos, em que há a imposição de um sacrifício inexigível, e (b) responsabilidade por risco, que pode derivar de danos resultantes de trabalhos públicos, de atividades excepcionalmente perigosas, de vacinações obrigatórias, da ação de presos foragidos ou alienados, do funcionamento de máquinas empregadas na atividade administrativa, do risco social, de necessidade administrativa e de calamidades nacionais.
A responsabilização do Estado pelo risco decorre do próprio fato do desempenho da atividade perigosa que o Estado exerce para a realização dos seus fins, na consecução do bem comum, cujos danos não podem ser transferidos ao indivíduo. Contudo, quando a atividade é exercida para benefício do cidadão, que recebe do serviço público o tratamento para a sua doença, é de se perguntar se o Estado também aí responde objetivamente por todo o dano sofrido pelo paciente, independentemente da regularidade do serviço prestado. Tratando da situação de quem solicita o serviço de vacinação, asseverou Canotilho:
“Nesta hipótese, poderia dizer-se que quem aceita uma atividade perigosa no seu exclusivo interesse deverá suportar o risco correspondente… (…) (mas) será sempre de pôr a questão da omissão de um dever de cuidado por parte dos serviços de saúde na hipótese que estamos analisando. Aceitar-se-ia, pois, a demonstração de uma atividade faltosa dos serviços competentes”.
Pode ser indenizado o dano produzido pela morte de um paciente internado em hospital público, para o qual a ciência recomendava a realização de cirurgia, efetuada com todos os cuidados e de acordo com as prescrições médicas, mas que mesmo assim se revelou inexitosa, causando a morte? Melhor incluir tal hipótese no âmbito restrito da responsabilidade pela culpa do serviço, pois não parece razoável impor ao Estado o dever de indenizar dano produzido por preposto de serviço público cuja ação, sem nenhuma falha, tenha sido praticada para beneficiar diretamente o usuário. Por isso, e para não fugir do sistema, assim como instituído no texto constitucional, devemos refluir para o exame do requisito da causa do dano. Na hipótese em que há o resultado danoso, apesar dos esforços do serviço público para o tratamento do doente, elimina-se a responsabilidade do Estado sempre que a administração pública demonstrar o procedimento regular dos seus serviços, atribuída a causa do resultado danoso a fato da natureza. Ao tratar da exclusão da responsabilidade do Estado, leciona o Professor Yussef Cahali, partidário da responsabilidade objetiva do Estado pela teoria do risco:
“A segunda regra pode ser estabelecida reconhecendo-se a nenhuma responsabilidade ressarcitória se o dano sofrido pelo particular tem a sua causa no fato de força maior, conseqüência de eventos inevitáveis da natureza: a exclusão de responsabilidade da Administração decorre da não-identificação de nenhum nexo de causalidade entre o evento danoso e a atividade ou omissão do Poder Público”.
Assim, o Estado se exonera do dever de indenizar por danos decorrentes do exercício de sua atividade médico-hospitalar sempre que demonstrar que o médico a seu serviço não lhes deu causa, mas que esta adveio das condições próprias do paciente.
A jurisprudência se divide quanto à natureza da responsabilidade do Estado por atos danosos praticados nos hospitais públicos por seus servidores, sejam médicos, enfermeiros ou serviçais, mas a maioria pende para a responsabilidade objetiva. Acórdão de 16.09.1986, do antigo Tribunal Federal de Recursos, está assim ementado:
“Realizada a cirurgia, com técnica adequada, não se atribuindo à negligência, imprudência ou imperícia do cirurgião, o acidente imprevisível de que resulta comprometimento do nervo ciático, com seqüela de redução de movimentos do joelho e paralisação do pé, não há como responsabilizar civilmente, por indenização correspondente, o cirurgião que recomendou o tratamento e o executou. A responsabilidade da entidade empregadora do encarregado do tratamento é, contudo, fundada no art. 107 da Constituição (de 1967), que adota o princípio da responsabilidade objetiva, pelo risco administrativo, em que a indagação de culpa é pertinente apenas para possibilitar regresso ou para elidir o dever de indenizar, quando, no primeiro caso, haja culpa do preposto e, no segundo, a culpa pelo evento seja exclusivamente da vítima” (ApCiv. 80.336, 1.a Turma). Outro no mesmo sentido:
“Responsabilidade civil. Menor hospitalizado às custas e sob a responsabilidade do INAMPS (…) Causalidade inafastável entre o dano e ato, sem concorrência qualquer da menor ou de seus genitores. Aplicação da teoria do risco administrativo, inserta no artigo 107, da Constituição Federal (de 1967)” (ac. de 25.06.1985, Revista do TFR 124/163).
Igual orientação foi reafirmada na ApCiv. 35.424-SP, em que a 4.a Turma do TFR considerou aplicável o princípio da responsabilidade objetiva do Estado para a indenização de dano provocado pelos serviços do INPS. O Tribunal Regional Federal da 1.a Região (Brasília) possui diversos julgados admitindo a responsabilidade objetiva dos hospitais mantidos pelo INAMPS (ApCív. 89.01.221268-MG, de 17.09.1990; ApCív. 89.01.226480-AM, de 12.09.1990: “As pessoas jurídicas respondem pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros (art. 27, § 6.o, CF), sendo de natureza objetiva a responsabilidade, somente elidível por prova exclusiva da parte contrária”; ApCív. 92.01.32316-6-MG, de 03.03.1993).
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, na ApCív. 76.340-1, 5ª Câmara Civil, de 23.04.1987, considerou indispensável a prova da falta anônima do serviço.
A melhor solução está no meio: não se atribui ao Estado a responsabilidade pelo dano sofrido por paciente que recorre aos serviços públicos de saúde, ainda quando provada a regularidade do atendimento dispensado, nem se exige da vítima a prova da culpa do serviço: em princípio, o Estado responde pelos danos sofridos em conseqüência do funcionamento anormal de seus serviços de saúde, exonerando-se dessa responsabilidade mediante a prova da regularidade do atendimento médico-hospitalar prestado, decorrendo o resultado de fato inevitável da natureza.
O médico servidor público, pelos atos praticados nessa condição, pode determinar a responsabilidade da entidade pública a que está vinculado. Ele responde regressivamente perante o ente público condenado a indenizar o dano, se demonstrada a sua culpa, pois a falta pode ser anônima, atribuível ao serviço, sem possibilidade de individualização do agente. A responsabilidade direta e primária é do Estado; a do médico, como a de todo servidor público, deveria ser apenas indireta, recompondo o prejuízo sofrido pelo Estado, desde que provada a sua culpa. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, interpretando a Constituição anterior, que nesse ponto não foi substancialmente modificada, tem reiteradas decisões sobre a admissibilidade de ajuizamento de ação diretamente contra o servidor, em litisconsórcio facultativo com o Estado, desde que o autor se proponha a provar, relativamente ao servidor, ter agido ele com culpa (RTJ 115/1383, 106/1182; 96/237).
A responsabilidade que surge para o Poder Público é de natureza extracontratual, submetida às regras do Direito Administrativo, pois na relação entre paciente e hospital, de contrato não se trata. Figueiredo Dias e Monteiro sustentam que, embora entre o doente e o médico que o assiste, por dever de ofício, em hospital público, não haja contrato, deve ser reconhecida a existência de uma relação contratual de fato entre o paciente e a organização hospitalar, pois o doente internado não é um estranho. Ocorre que os deveres de cuidado e de proteção que resultam do comportamento social típico da internação derivam do princípio da boa-fé, e o seu descumprimento pode ser examinado, no Direito brasileiro, à luz do artigo 159, que fixa o dever de indenizar os danos decorrentes de atos praticados com negligência, imprudência ou imperícia (ilícito absoluto).
O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) pode prestar serviços hospitalares através de seus próprios hospitais, ou entidades conveniadas, e por médicos credenciados. Fazendo ele convênio com hospitais particulares, é dele a obrigação de fiscalizar a prestação desses serviços, e dele, portanto, a responsabilidade pelos danos causados em pacientes, seus segurados. Foi isso o que decidiu o Tribunal de Alçada de Minas Gerais no AI 135.591-7, de 24.11.1992:
“Ao exame do contrato de fls. dessume-se que a agravada é obrigada a oferecer internação e tratamento a todas as pessoas que o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica, depois substituído pelo INSS) lhe enviar (cláusula primeira), como também o aludido órgão público tem o direito de fiscalizar os serviços médico-hospitalares prestados pela agravada… Deflui dessa circunstância que o referido órgão público é responsável pelo tratamento médico-hospitalar dado aos seus beneficiários, inclusive pelos danos advindos a eles na realização do aludido tratamento (…) O INAMPS é obrigado a responder pelos danos causados a terceiros, no exercício da sua função, consoante os precisos termos do § 6.o do artigo 37 da Constituição Federal.”
Também pelos atos dos médicos credenciados tem sido reconhecida a responsabilidade do Instituto (TRF da 1.a Região, ApCív. 89.01.221268; TFR 1.a Região, ApCiv. 89.01.226.480; TRF da 3.a Região, ApCiv. 90.03.12035-8, de 16.12.1991). Respondem os médicos, diretamente, provada a sua culpa, e o Instituto, solidariamente.
8. As Entidades Privadas de Seguro e de Assistência Médica
A previdência privada assume a cada dia maior importância no país. As dificuldades encontradas pela Previdência Social para atuação eficaz no âmbito da saúde têm levado grande número de pessoas à proteção complementar na área da previdência privada, que hoje já atinge 35 milhões de pessoas, das quais 28 milhões são ligadas a empresas. Apesar do custo (U$ 35,00 por pessoa), tende a se expandir.
A entidade privada de assistência à saúde, que associa interessados através de planos de saúde e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação dos serviços a que está obrigada, tem ela responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados. A 2.a Câmara Cível do TJSP, sendo relator o Desembargador Walter Moraes, nos Emb. Infr. n. 106.119-1, assim decidiu:
“Empresa de assistência médica. Lesão corporal provocada por médico credenciado. Responsabilidade solidária da selecionadora pelos atos ilícitos do selecionado (…) Embargante: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde”. Igualmente, o TJRJ, no AI 1.475/92, por sua 2.a Câmara Cível, admitiu que “se há solidariedade da empresa de assistência médica, do médico por ela credenciado e do hospital, na reparação dos danos, contra qualquer deles pode dirigir-se o pedido”. Também em ação de indenização promovida contra a clínica médica e a empresa de saúde Blue Life ficou reconhecido:
“A co-ré também é responsável solidariamente em decorrência do contrato de assistência médica havido com a autora. Tendo aquela credenciado o réu para a prestação dos serviços médicos, assumiu a responsabilidade para a sua perfeita execução” (voto vencido proferido na Ap.Civ 140.190-1, de 06.12.1990, depois acolhido nos embargos infringentes julgados em 06.08.1992).
Na ApCiv. 165.656-2, o TJMG reconheceu a responsabilidade solidária da Golden Cross com o médico por ela contratado (ac. de 14.12.1993).
Diferentemente ocorre com os planos de saúde que dão liberdade para a escolha de médicos e hospitais, e com os seguros-saúde, que apenas reembolsam as despesas efetuadas pelo paciente, e por isso não respondem pelos erros dos profissionais livremente selecionados e contratados pelo seu segurado.
As instituições privadas utilizam-se de contratos de adesão, cujas claúsulas muitas vezes não se harmonizam com o princípio da boa-fé objetiva e com as regras do Código de Defesa do Consumidor. Convém examinar, embora sucintamente, alguns exemplos desse conflito, que tende a se ampliar na medida em que se estende o campo da previdência privada, utilizando informação jurisprudencial coletada no Estado de São Paulo pelo Dr. Aristóbulo de Oliveira Freitas:
a) Não se admitiu como válida cláusula de exclusão de pagamento de seguro de reembolso de despesa com internação hospitalar, porque, apesar da internação, não houve a cirurgia (3ª CCTJRS, 30/9/92, Ap.Civ. 592070528).
b) A limitação do número de dias de internação não foi aceita pela 15.a CCTJSP na Ap.Civ. 222.217-2/7, em acórdão de 22.02.1994, porque “a norma contratual há de ser sopesada ante a realidade da situação individual, sob pena de chegar-se ao absurdo de impor ao próprio paciente que limite a extensão do seu mal ou que estabeleça o prazo da sua internação, tarefa que na realidade está afeta ao médico acompanhante. No caso presente, tem-se que o paciente esteve internado por seis dias, além dos trinta dias, vindo o óbito”.
c) Julgou-se inadmissível a exigência de apresentação de guia de internação, subscrita por médico credenciado, até 24 horas depois da internação de urgência determinada por médico não credenciado:
“Se o paciente é atendido por médico particular e nessa situação é internado, é mais do que evidente que nenhum outro médico credenciado interferirá ou assinará requisição de guia, criando-se um impasse que, como bem salientou o julgado, viola a essência do contrato” (ac. da 14a CCTJSP, na Ap.Civ. 222589-2/3, de 08.03.1994).
d) Os contratos de seguro ou de assistência excluem, de modo geral, a cobertura para o tratamento dos pacientes afetados pelo vírus da Aids. A Resolução 1401/93, do Conselho Federal de Medicina, condenou essa prática, mas nos Tribunais as decisões são divergentes. A 5.a CCTJRS considerou que a mera exclusão de tratamento de moléstia infecto-contagiosa de notificação compulsória não é cláusula abusiva (MS 594012130, de 14.04.1994), invocando outra decisão no mesmo sentido, da 4.a CCTJRJ, na Ap.Civ. 6.217/93, e o conteúdo da Circular 10/93, da Superintendência de Seguros Privados (Susep), órgão federal encarregado da fiscalização das companhias de seguros, vedando a inclusão, nos seguros de assistência médica ou hospitalar, de coberturas não particularizadas na apólice. Já a 14.a CCTJSP, em mandado de segurança impetrado para garantir a continuidade da assistência, afirmou, com melhor razão, que “a supressão de determinados tratamentos como é aquele aqui contemplado configura em princípio uma cláusula abusiva nos termos do artigo 51, I, § 1.o, da Lei 8.079 (de 11.09.1990, Código de Defesa do Consumidor) (MS 224430-2/3, de 03.05.1994). A 18.a CCTJSP considerou que, já estando sendo prestada a assistência, ela deve, de qualquer modo, continuar, “na medida em que a suspensão de tratamento médico do paciente aidético, como notório, implica abreviação da morte”, reservado à seguradora o direito de, na ação principal, uma vez acolhida a sua tese de exclusão, cobrar as despesas efetuadas (MS 231992-2, de 29.03.1994).
e) Quando o segurado procurou hospital conveniado com o plano de saúde (Blue Life), considerou-se abusiva a cláusula que condicionava a cobertura ao atendimento por médico credenciado:
“A cláusula VI, inc. 8º, do mesmo plano de saúde, exclui da obrigatoriedade do ressarcimento, tratamento e exame de qualquer espécie por médicos não credenciados, mas, como se pode concluir, trata-se de verdadeiro artifício malicioso utilizado pela ré-apelada, porquanto ao credenciar determinado hospital está aceitando o tratamento por médicos a este vinculados, e não seria possível ao autor ficar procurando médico que se dispusesse a atendê-lo nesse hospital” (Ap.Civ. 223242-2/8, 18.a CCTJSP, de 09.05.1994).
f) É muito comum cláusula abusiva que permite à entidade de assistência rescindir unilateralmente o contrato, utilizada quando o paciente avança na idade ou começa a apresentar doenças. A 19ª CCTJSP, na ApCiv. 292337-2/6, considerou inválida a cláusula que permitia à companhia Amil a extinção unilateral do contrato de cobertura de serviços médicos, ainda durante o período de carência (25.10.1993). Já a extinção do contrato por falta de pagamento das prestações somente pode ocorrer “após constituído o devedor em mora, já que não se cuida na espécie de mora ex re, pois as cláusulas contratuais devem ser interpretadas em favor do consumidor” (ac. da 18.a CCTJSP, ApCiv. 233323-2/6, de 09.05.1994). Nesse mesmo acórdão, foi excluída a cláusula que estabelecia carência por dias de atraso no pagamento das prestações.
A defesa judicial dos associados de instituição privada de seguro ou assistência médico-hospitalar pode ser individual ou coletiva (art. 80, CDC). A defesa coletiva (art. 81) será exercida quando se tratar de interesses ou direitos difusos (os transindividuais, indivisíveis, de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), de interesses ou direitos coletivos (os transindividuais, indivisíveis, de grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base) e de interesses ou direitos individuais homogêneos (os decorrentes de origem comum). São legitimados, concorrentemente, o Ministério Público, a União, Estados e Municípios, as entidades da administração pública destinadas especificamente à defesa desses interesses e direitos e as associações constituídas há pelo menos um ano, que tenham por fim a sua defesa (art. 82). Os interesses e direitos dos associados de companhia de seguro ou assistência médica podem ser classificados no grupo dos interesses ou direitos coletivos, cabendo a ação coletiva quando se cuida, genericamente, da eliminação de uma cláusula abusiva usada em contrato de massa, ou da redução dos reajustes de prestações, estando legitimada para promover a ação a associação privada constituída para a defesa do consumidor. No Brasil, a mais ativa e respeitada entidade desse gênero é o IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, com sede em São Paulo, de significativa atuação na área, cuja legitimidade ativa tem sido reconhecida para promover ações civis públicas sobre a validade de cláusulas e práticas nesse âmbito (Emb. Infr. 180713-8-01, de 20.12.1993).
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9. Dano
Pressuposto da responsabilidade é o dano (toda ofensa a bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica), que pode ser patrimonial, de natureza material ou econômica, refletindo-se no patrimônio do lesado, ou extrapatrimonial, relativo a valores de ordem espiritual. O mesmo fato pode gerar as duas responsabilidades, que são cumuláveis.
A ofensa à pessoa pode trazer prejuízos de variada natureza, (a) provocando morte, doenças, incapacidades orgânicas ou funcionais; (b) gerando conseqüências de ordem psíquica, sexual ou social; (c) frustrando o projeto de vida da vítima. Tais danos podem afetar, conforme sua natureza, tanto o paciente como os seus familiares.
Na verificação da existência do dano, atende-se ao estado anterior do paciente, quando já apresentar deficiências, às quais se acrescenta o fato da intervenção médica, de tal modo que o dano agora produzido seja especialmente mais grave em razão da deficiência anterior, como ocorre com quem já não tinha o par do órgão duplo e perde o segundo, ou portava uma deficiência cardíaca, aumentada com o fato superveniente. O dano pelo qual responde o médico é o decorrente diretamente da sua ação, agravado pelas condições pessoais do paciente, pois este resultado mais grave estava na linha da causalidade posta pela ação do médico.
Para a sua avaliação, deve ser considerada a melhoria do estado do paciente, favorecido pela atuação médica. Fica excluída a alteração que se constituir em meio necessário para a realização do ato médico, como a incisão cirúrgica praticada de acordo com os padrões aceitos.
Havendo a intervenção de diversos agentes, é um problema de causalidade determinar o que deve ser atribuído a cada um. A 2ª CCTJRS julgou improcedente, por falta de prova, a ação de indenização promovida por uma paciente em quem foi encontrado corpo estranho no abdômen, tendo sido submetida a três cesarianas, por médicos diversos (RJTJRS v. 167, p. 412).
Examina-se, a seguir, algumas situações em que o dano é excepcionalmente autorizado: aborto, operação transexual e pesquisa médica.
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9.1. Aborto
O aborto é prática proibida pelo Código Penal (arts. 124, 125 e 126), somente permitido o praticado por médico e se necessário para salvar a vida da gestante, ou para interromper gravidez resultante de estupro (art. 128). O Código de Ética Médica veda o descumprimento da legislação específica sobre o abortamento (art. 43). Trata-se de um fato social, mais do que jurídico, pois o radicalismo da solução legal leva os interessados para a clandestinidade, em que o risco fica superlativamente agravado. De acordo com dados estatísticos, no município de São Paulo, para cada 100 mil nascidos vivos, 99,5 é a taxa de morte materna, sendo o aborto responsável por 10,7% dessas mortes. A decisão para o abortamento, nos casos permitidos no Código Penal, chamados de aborto necessário e de honra, é reservada ao médico; quando se trata de estupro, porém, se não há sentença judicial autorizando o aborto ou sentença condenatória penal do autor do fato (o que dificilmente vai ocorrer, dada a exigüidade do tempo), o médico deve se resguardar com a exigência de apresentação de documento que o convença da existência do estupro. Nos seus Comentários ao Código Penal, ensina Nelson Hungria:
“Se existe, em andamento, processo criminal contra o estuprador, seria mesmo de bom aviso que fossem consultados o juiz e o representante do Ministério Público, cuja aprovação não deveria ser recusada, desde que houvessem indícios suficientes para a prisão preventiva do acusado. (…) Na prática, para evitar abusos, o médico só deve agir mediante prova concludente do alegado estupro, salvo se o fato é notório ou se já existe sentença judicial condenatória do estuprador. Entretanto, se o conhecimento de alguma circunstância foi razoavelmente suficiente para justificar a credulidade do médico, nenhuma culpa terá este, no caso de verificar-se, posteriormente, a inverdade da alegação. Somente a gestante, em tal caso, responderá criminalmente”.
Isso se recomenda para evitar a fraude à lei ou uma imputação mais apressada.
A 24ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em Oslo, 1970, adotou uma declaração sobre o aborto terapêutico a respeito do que deve ser observado:
a) a decisão de interromper uma gravidez deve ser normalmente aprovada por escrito por pelo menos dois médicos, escolhidos em razão de sua competência profissional;
b) a intervenção deverá ser praticada por médico habilitado, em estabelecimentos credenciados pelas autoridades competentes. Ressalva-se, entretanto:
c) se o médico, em razão de suas convicções, considera-se impedido de aconselhar ou de praticar o aborto, ele pode se negar a fazê-lo, assegurando a continuidade dos cuidados por um colega qualificado.
Há notícias de sentenças autorizando o aborto fora dos casos permitidos na lei, para interrupção da gravidez de feto anencéfalo, o que é solução de eqüidade.
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9.2. Operação Cirúrgica Para Mudança de Sexo
O transexualismo é capaz de produzir profundo desequilíbrio psíquico, que pode conduzir ao suicídio; mas, como adverte Penneau, há também o transexualismo de perversão. Por falta de uma solução legislativa, a jurisprudência francesa negava os pedidos de transexuais, tendo a Corte Européia proferido julgamentos condenatórios contra a França, por desrespeito ao artigo 8o da Convenção dos Direitos do Homem, o que levou a Corte da Cassação, em 1992, a aceitar a mudança de sexo.
A legislação penal brasileira prevê como crime de lesão corporal gravíssima a ação da qual resulta perda ou inutilização de membro, sentido ou função (art. 129, § 2.o, CP). A jurisprudência, porém, tem autorizado a operação, do que é bom exemplo acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“Jurisdição voluntária. Autorização para operação. A pretensão da postulante de obter autorização para submeter-se a intervenção cirúrgica com o propósito de alteração de sexo, com extirpação de glândulas sexuais e modificações genitais, é de ser conhecida pelos evidentes interesses jurídicos em jogo, dados os reflexos não só na sua vida privada como na vida da sociedade, não podendo tal fato ficar a critério exclusivamente das normas ético-científicas da medicina.”
A outra questão, conseqüente à operação, é a alteração do registro civil, que também tem sido autorizada, pois se trata de simples conformidade do assento à nova realidade. As certidões fornecidas pelo Ofício do Registro Civil não devem fazer referência ao fato da operação, para não manter nos documentos a dualidade que já atormentava o transexual, salvo o caso de certidão requisitada pelo juiz.
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9.3. A Pesquisa Médica
O Tribunal de Nuremberg, diante do horror por que passavam as vítimas dos campos de concentração, julgou conveniente estipular dez regras sobre a experimentação humana: o sujeito deve ter capacidade de consentir e dar seu consentimento, livre de qualquer coação e plenamente esclarecido; a experiência deve ser necessária, e impossível de realizar-se de outro modo; deve ser precedida de experiências animais e de estudo profundo da questão; deve evitar todo o sofrimento e dano não necessários; não deve pressupor a morte ou a invalidez do sujeito; os riscos não devem exceder o real valor da experiência; deve ser evitado todo o dano eventual; o experimentador deve ser qualificado; o sujeito deve poder interromper a experiência; o pesquisador deve estar pronto a interromper a experiência em caso de perigo.
Essas recomendações, um avanço para a época e fundadas basicamente nas prescrições adotadas pela associação americana, já sofreram críticas pelas suas insuficiências.
A matéria veio a ser regulada exaustivamente, no Brasil, no ano de 1988, através de dois textos.
O Código de Ética Médica (Resolução n. 1246/88) veda ao médico: participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos, raciais ou endêmicos; a pesquisa sem consentimento esclarecido por escrito; o uso de terapêutica não liberada, sem autorização dos órgãos competentes e sem o consentimento do paciente; promover pesquisa na comunidade sem o conhecimento da coletividade e sem que o objetivo seja a proteção da saúde pública; obter vantagens pessoais ou renunciar à sua independência em relação aos financiadores; realizar pesquisa médica em ser humano sem aprovação e acompanhamento de comissão isenta; utilizar-se de voluntários dependentes ou subordinados ao pesquisador; realizar pesquisa com suspensão ou não uso de terapêutica consagrada, em prejuízo do paciente; realizar experiências com novos tratamentos em paciente incurável ou terminal sem esperança razoável de utilidade (artigos 122 a 130).
Em 1988, o Conselho Nacional de Saúde editou a Resolução n. 1, de 13.06.1988, em que regulou a pesquisa na área da saúde, dispondo sobre: “normas gerais de pesquisa em saúde; aspectos éticos da pesquisa em seres humanos; pesquisa de novos recursos profiláticos – diagnósticos terapêuticos e de reabilitação; pesquisa em menores de idade inferior a 18 anos completos e em indivíduos sem condições de dar conscientemente seu consentimento em participar; pesquisa em mulheres em idade fértil, mulheres grávidas; pesquisa em conceptos – pesquisa durante o trabalho de parto, no puerpério e na lactação – pesquisa em óbito fetal; pesquisa em órgãos, tecidos e seus derivados, cadáveres e parte de seres humanos; pesquisa farmacológica; pesquisa de outros recursos novos; pesquisa com microorganismos patogênicos ou material biológico que possa contê-los; pesquisas que impliquem construção e manejo de ácidos nucleicos recombinantes; pesquisa com isótopos radioativos, dispositivos e geradores de radiações ionizantes e eletromagnéticas; comitês internos das instituições de saúde; execução da pesquisa nas instituições de saúde”.
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10. Causalidade
A fim de que uma modificação no mundo exterior possa ser atribuída a alguém, é preciso determinar que o fator causal desse resultado foi posto pelo imputado, em se tratando de responsabilidade por fato próprio, ou por pessoa ou coisa pela qual ele responda.
Acontecendo os fatos sempre num contexto de múltiplos fatores e condições, pois nada se dá de forma isolada, é indispensável definir qual a condição determinante do resultado, a fim de que este possa ser imputado ao seu autor. No Direito Penal, em que a matéria é extensamente estudada em razão da posição proeminente que o ponto assume na responsabilidade criminal, várias teorias surgiram para precisar, dentre todas as condições, qual a causa do dano. A mais aceita, inclusive no âmbito do Direito Civil, é a teoria da causalidade adequada, segundo a qual o juiz, num juízo de inferência estabelecido a partir dos dados experimentais, determina qual, naquelas circunstâncias, era a condição mais adequada para produzir o resultado. O autor dessa condição responde pelo resultado danoso.
A resolução do tema da causalidade, em se tratando de responsabilidade médica, tem sido sempre um tormento para a doutrina, e também para os tribunais, uma vez que a ação médica se faz presente em situações peculiares, provocando reações orgânicas e psíquicas às vezes imprevisíveis e de conseqüências sérias. Daí a dificuldade de explicitar qual realmente foi a causa posta pelo galeno. Ainda mais se agrava a questão quando interferem condições supervenientes, com a participação de outras pessoas, médicos ou não; nestes casos, não há a responsabilidade do que primeiro atuou se o resultado decorreu de fato novo e alheio, que por si só causou o resultado.
Para vencer a dificuldade da prova do nexo de causalidade, a jurisprudência francesa aceita a teoria da perda de uma chance. Em um julgamento de 1965, a Corte de Cassação admitiu a responsabilidade médica porque o erro de diagnóstico levou a tratamento errado, privando a vítima de uma chance de cura. Na verdade, de acordo com essa teoria, o juiz não está seguro de que o evento teria ocorrido pela ação do médico, mas a falta facilitou a superveniência do resultado. O Professor François Chabas critica a solução, pela qual se faz a abstração do laço de causalidade, presumindo-se a sua existência, e preconiza o retorno à teoria clássica da culpa com nexo causal. Jean Penneau também a critica, mas Chammard e Monzein consideram que a atual orientação da Corte francesa, diante da evolução atual da Medicina, é uma necessária solução de eqüidade.
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11. Conclusão – Perspectivas Atuais
A mudança do eixo da teoria da responsabilidade civil passou do autor do ato ilícito para a vítima do dano, o que aconteceu a partir do trabalho de Boris Starck e hoje constitui sua mais forte tendência. “A responsabilidade que mira a vítima é, a nosso juízo, a verdadeiramente jurídica”. Lambert-Faivre publicou artigo na Revue Trimestrielle de Droit Civil (1987, p. 1), com o sugestivo título “A evolução da responsabilidade civil de uma dívida de responsabilidade a um crédito de indenização”, e ali analisou duas recentes leis francesas (a da circulação de veículos, de 05.07.1985; e a de indenização por atos de terrorismo, de 09.09.1986), em que mostra que o pivot da responsabilidade civil, antes centrado no sujeito responsável, hoje está na reparação do dano à vítima, ficando marginalizada a pessoa do agente.
A par dessa tendência, ainda existe a inafastável realidade de ampliação crescente do número de reclamações administrativas ou judiciais fundadas em culpa atribuída à ação médica. Seus valores, no Brasil, são relativamente baixos, mas nos EUA chegam a milhões, assim também no Canadá, onde a empresa seguradora Loyds de Londres chegou a dizer: “Mudem a responsabilidade civil ou a maneira de indenizar; se não, nos vamos, porque não é rentável”.
Os médicos e juristas que têm estudado o assunto concluem de uma maneira uniforme pela necessidade da repartição econômica do risco do exercício da medicina. Mlle. Viney já demonstrara sua necessidade, diante das modernas características da atividade técnica. O Professor Andre Tunc, no seu trabalho “L’assurance tous risques medicauxs”, considera melhor substituir a responsabilidade civil individual do médico pelo seguro. Guido Alpa responde à objeção que se faz à instituição do seguro médico, que seria um fator de perda da qualidade da Medicina e do sentido de responsabilidade profissional, lembrando que na Europa as ordens profissionais são favoráveis à difusão do seguro.
No Brasil, segundo informa Miguel Kfouri Neto, os profissionais médicos pouco procuram o seguro de risco, o que se deve em parte ao fato de muitos serem assalariados e, em parte, ao pequeno número das ações de indenização. No Congresso Nacional tramitam dois projetos de lei. O de autoria do Senador Nelson Carneiro institui seguro obrigatório dos estabelecimentos que realizam cirurgias com anestesia geral; o do Deputado Nelson do Carmo cria o seguro obrigatório contra erros médicos e infecções hospitalares, que seria contratado pelo próprio paciente. As soluções, como se vê, são incompletas.
De tudo, porém, se conclui que o futuro se encaminha para alguma forma de repartição dos riscos através do seguro, depois de resolvidas as seguintes questões: “a definição de profissional; a definição da responsabilidade profissional; a determinação das técnicas de distribuição do risco profissional; os limites do seguro”.
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Siglas e abreviaturas
ApCiv. – Apelação Cível
CCTJRJ – Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
CCTJRS – Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
CCTJSC – Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
CCTJSP – Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
MS – Mandado de Segurança
REsp. – Recurso Especial
RTJ – Revista Trimestral de Jurisprudência (STF)
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TACiv/RJ – Tribunal de Alçada Civil do Rio de Janeiro
TFR – Tribunal Federal de Recursos
TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TRF – Tribunal Regional Federal.
Autor: Aguiar Júnior, Ruy Rosado de.
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Em: Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 84, n. 718, pp. 33-53, ago. 1995.
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Em: Universitas/Jus, n. 5, pp. 149-192, jan./jun. 2000.
Notas: Palestra proferida no IV Congresso Internacional de Danos, realizado em Buenos Aires, em 1995, promovido pela Associacion de Abogados de Buenos Aires.
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